Suspiria (Dario Argento, 1977)

Claquette
6 min readJan 23, 2021

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Jessica Harper vive Suzy Bannion no giallo sobrenatural de Dario Argento, Suspiria (1977). © Seda Spettacoli

O texto abaixo pode conter spoilers.

O que causa o descolamento entre o mundo real e o mundo dos sonhos? Um pesadelo pode ser difícil de ser descrito ao acordar, mas se você não consegue traduzi-lo em palavras, pode ao menos tentar reproduzi-lo em imagens. Imagino que este seja o caso de Suspiria (1977), quando Dario Argento concebeu sua narrativa e toda a atmosfera que iria compor esta obra-prima definitiva do giallo. Co-roteirizado por ele e Daria Nicolodi, o filme é um verdadeiro marco audiovisual e continua intrigando a audiência da atualidade.

A primeira vez que tive contato com o filme foi há uns 15 anos, ou seja, eu tinha, aproximadamente, 14 primaveras de vida. Não preciso nem dizer que não possuía maturidade o suficiente para compreender o filme, muito menos sua proposta. Lembro-me de ter gostado da utilização das cores, da impactante fotografia, da forma como o suspense tinha sido trabalhado, porém, também me lembro de ter achado a história enfadonha e batida demais.

Claro. Estamos falando aqui de um moleque acostumado com o terror fast-food hollywoodiano do início dos anos 2000. Obviamente aquele Guilherme não iria se encantar com o terror estilizado de Argento. O que me surpreende é que, de lá para cá, devo ter revisto a obra umas 3 ou 4 vezes e, em todas elas, o filme só cresceu em qualidade artística.

Suspiria (1977) conta com a brilhante direção de fotografia de Luciano Tovoli. © Seda Spettacoli

Este último reencontro com o filme foi, no mínimo, muito interessante. Foi como se eu tivesse vendo o filme pela primeira vez (é sempre assim). Ou melhor, estava vendo um outro filme, totalmente diferente daquele que guardava em minha memória da primeira, segunda ou terceira vez. E se isso não é a mágica do Cinema, meus amigos, eu não sei o que mais pode ser.

O roteiro de Suspiria continua não sendo o seu forte, é verdade. Não tem nada na história que não tenha sido contado de uma maneira melhor antes ou depois dos dedos de Daria Nicolodi e Argento terem tocado a máquina de escrever, adaptando o ensaio Suspiria de Profundis, de Thomas De Quincey.

Porém, o que torna a narrativa surpreendente e ainda relevante, sem dúvidas, é a maneira como ela foi trabalhada e desenvolvida por Argento. O formato aqui se sobrepõe ao conteúdo, e veja, nem sempre isso é, necessariamente, ruim. A linguagem cinematográfica é o elemento mais importante aqui. Ela é quem dita as regras do jogo. É por meio dos enquadramentos, cores e luzes que o espectador irá sentir toda a sorte de sensações pretendida por Argento. O texto entra como segundo plano, uma mera formalidade, talvez menos importante, de fato, mas de forma alguma dispensável.

Violência gráfica, mas não gratuita. Nenhuma gota de sangue é negligenciada por Argento. © Seda Spettacoli

A jornada de Suzy Bannion (Harper), uma doce e ingênua menina americana que se vê mergulhada numa teia de horror durante sua estada numa escola de balé na Alemanha, mostra-se eficiente por apostar suas fichas no lúgubre, no insano e numa assombrosa fantasia. Uma espécie de Alice no país das Maravilhas de terror. Até descobrir tudo o que se passava ali, Bannion dança literal e metaforicamente com o desconhecido e com o sobrenatural. A intensidade dos fatos só se choca com a inesperada reviravolta de tudo o que vemos e presenciamos cena após cena.

O que vemos na tela não é um mero filme de terror cheio de personalidade e carregado de simbolismos, mas sim um pesadelo filmado em que somos testemunhas, não espectadores. O flerte com o surrealismo a que o cineasta se propõe não só foi uma escolha artística acertada, mas também uma maneira que ele encontrou de formatar sua narrativa sobrenatural, fazendo do estilo um elemento narrativo e não apenas um capricho da direção de arte.

A produção do filme ficou a cargo de Claudio e Salvatore Argento, o irmão e pai de Dario. © Seda Spettacoli

Então, por isso, julgar a história de Suspiria como superficial e simplória é tão errado quanto dizer que filmes mudos são chatos porque não têm falas. As escolhas estilísticas de Argento não só definem todo o curso da trama, mas também são parte integrante dela em absoluto. Desde a estonteante fotografia de Luciano Tovoli até a inebriante trilha sonora composta pela Goblin, uma banda italiana de rock progressivo, que me causou calafrios e assombros em diversos momentos (juro!). Tudo aqui casa perfeitamente bem e se ajusta aos comandos do mestre do giallo, como uma orquestra sinfônica deve obedecer as mãos de seu maestro.

As atuações, no entanto, não envelheceram muito bem. Beiram o caricatural e, às vezes, atingem o ridículo. Apesar disso, temos uma interessante interpretação de Jessica Harper que conduz sua Suzy Bannion de uma maneira tímida, porém, acertada. É a princesa aprisionada na fortaleza da bruxa, de uma maneira estranhamente paradoxal. Alguns efeitos visuais e especiais também ficaram datados, como o morcego de animatronic e a silhueta sobrenatural da velha diabólica.

Giuseppe Bassan está à frente do design de produção da obra. © Seda Spettacoli

Contudo, é importante salientar que a sequência final me surpreendeu e me tirou o fôlego por resistir à prova do tempo. Sempre fico de queixo caído quando revejo. É de uma proeza e de um apuro imagético que intriga e fascina na mesma proporção. Os cuidados com os detalhes nessa sequência, especificamente, são invejáveis até mesmo para os padrões de hoje. Mais um legado para a prateleira de feitos que a obra coleciona.

A montagem e a edição de Franco Fraticelli foram outros dois pontos que me extasiaram, sobretudo na sequência final, justamente por conseguirem criar a atmosfera de tensão e horror que as cenas careciam, como naquela em que o cego é atacado fatalmente no meio da noite ou, então, quando uma das amigas de Bannion tenta escapar do misterioso monstro assassino. Existem méritos da montagem e edição não só nessas sequências, mas em outras tantas, que só enriquecem a experiência visual.

Bannion (Harper) caminha rumo o ponto final da trama. © Seda Spettacoli

Enfim, Suspiria continua sendo um filme relevante não só para o gênero, mas para o Cinema de uma maneira geral, principalmente por levarmos em consideração seus mais de 40 anos de lançamento.

Se isso não for o suficiente para você, acrescente o fato de o filme possuir uma das qualidades técnicas e artísticas mais marcantes de toda a história cinematográfica, que à época soou como uma verdadeira disrupção ao curso da Sétima Arte. Um filme de quilate único que ousou e revolucionou dentro de seu tempo, mas que continua reverberando suas influências até os dias de hoje.

Para mim, Suspiria é mais que um filme, meramente, é uma experiência que todos os amantes do Cinema, independentemente de gostarem ou não de terror, deveriam se permitir viver.

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Suspiria (1977) © Seda Spettacoli

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Written by Claquette

Mestre em Audiovisual, entusiasta das artes, aspirante a escritor e cantor profissional de chuveiro.

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